Safra em xeque: aprendizado de máquina revela gatilhos climáticos que tiram comida do prato

Usando três décadas de dados e modelos de aprendizado de máquina, pesquisadores da USP e do CEMADEN identificam chuvas críticas e calor noturno como gatilhos climáticos que podem reduzir drasticamente as colheitas de soja e milho brasileiros.

Soja, milho, segurança alimentar
A soja é uma das principais culturas do Brasil, essencial para a economia e a segurança alimentar. Seu desenvolvimento é altamente sensível a variações climáticas, como falta de chuva e temperaturas extremas.


As maiores lavouras de soja e milho do Brasil enfrentam um adversário invisível: extremos climáticos cada vez mais frequentes. Um estudo liderado pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, em parceria com o Instituto de Estudos Avançados da USP e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), criou um arcabouço de aprendizado de máquina para transformar séries históricas de clima e produção em informação acionável sobre riscos à colheita.

A iniciativa utiliza bases oficiais do IBGE e do Departamento de Economia Rural do Paraná (Deral), além da reanálise global ERA5-Land do ECMWF, garantindo dados confiáveis e atualizados.

O cerne do trabalho é identificar os fatores climáticos de impacto (CID), combinações de calor, seca ou chuvas extremas que afetam diretamente a produtividade. Para isso, os pesquisadores aplicaram florestas aleatórias (Random Forest) com eliminação recursiva de variáveis, seguidas do método de explicações aditivas de Shapley (SHAP), que explica a importância de cada índice climático na previsão das perdas.

O resultado é um mapa de vulnerabilidade que aponta quando e onde as plantas ficam mais expostas, informação valiosa para agricultores, cooperativas e órgãos de extensão rural.

Dos campos aos computadores

Primeiro, as equipes compilaram três décadas de rendimentos municipais de soja e milho e cruzaram esses números com mais de trinta indicadores climáticos, de totais mensais de chuva a índices de seca SPEI. Para driblar problemas de colinearidade, variáveis altamente correlacionadas foram descartadas, deixando apenas os sinais mais robustos do clima sobre a lavoura.

Aprendizado de máquina, soja, milho
O aprendizado de máquina permite identificar padrões entre clima e produtividade agrícola, revelando como fatores como chuva, temperatura e seca influenciam diretamente as safras de soja e milho.

Em seguida, o algoritmo Random Forest “aprendeu” a ligar os pontos entre clima e produtividade, enquanto o SHAP atribuía a cada CID um peso numérico fácil de interpretar. Esse processo revelou que a precipitação média continua sendo o fator dominante, mas seu impacto depende da fase do ciclo e da interação com picos de temperatura mínima noturna, um estresse pouco debatido fora da academia.

Quando o céu não ajuda

Os resultados mostraram que certas janelas climáticas funcionam como gargalos para o sucesso da safra, especialmente no Sul e no Centro-Oeste.

Principais alertas identificados

  • Chuva crítica (< 100 mm/mês em dez–jan–fev) eleva o risco de perda de soja em até 0,6 t ha⁻¹
  • Noites quentes (Tmín > 27 °C em fevereiro) agravaram prejuízos durante a mega-seca de 2019–2022 no Paraná
  • SPEI-3 meses < –1 indica seca moderada a severa; valores abaixo desse limiar correlacionam-se com quebras de safra em Rio Grande do Sul
  • Excesso de chuva (> 150 mm em dezembro) também derruba rendimentos, mostrando que “água demais” pode ser tão danosa quanto a escassez

Ao tornar visíveis esses gatilhos, o estudo ajuda produtores a planejar escalonamento de plantio, contratar seguro agrícola e decidir investimentos em irrigação.

Por que isso importa?

Com as projeções de aquecimento global apontando para eventos de calor mais longos e secas mais recorrentes, entender os CID deixa de ser exercício acadêmico e vira questão de segurança alimentar. O método proposto oferece dois ganhos: transparência, porque o SHAP mostra exatamente por que o modelo prevê perdas, e transferibilidade, já que pode ser adaptado a outras culturas ou regiões usando a mesma lógica de dados abertos.

Além disso, conhecer limiares críticos alimenta sistemas de alerta precoce, orienta políticas de crédito rural e fortalece o diálogo entre ciência e setor produtivo. Ao reunir inteligência artificial e bases oficiais brasileiras, o trabalho demonstra que é possível sair da dependência de médias climáticas genéricas e avançar para diagnósticos localizados, fundamentais para manter a mesa do brasileiro, e do mundo, abastecida em meio às incertezas do clima.

Referência da notícia

A data-driven framework for assessing climatic impact drivers in the context of food security. 10 de abril, 2025. Benso, M. et. al.

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